Nesta madrugada, Raquel Joaquina da Silva, a Raquel de Dom Hélio,
deu seu último suspiro neste mundo e partiu para os braços Daquele em quem
sempre acreditou estar.
Nascida em Livramento de Nossa Senhora, aos 09 de março de 1926, Raquel experimentou na
própria carne, ainda na mais tenra infância, o que significava nascer pobre e
negra aos meados da primeira metade do século passado: sem grande possibilidade
de estudos, tendo que trabalhar duro para sobreviver, viveu de cá para lá, aguentando
imposições, indelicadezas, e suportou a infame e natural discriminação que
sofriam negros e pobres também nas terras de Nossa Senhora do Livramento. Mas,
também, foi nesse inóspito ambiente, acalentada como possível era, pela
família, sobretudo pela mãe Maximiliana, tida por ela sempre em alta
consideração, que Raquel adquiriu a retidão moral, princípios de fé e
habilidade profissional, possibilitando-a, em época de maiores exigências, se
tornar Raquel de Dom Hélio, por ter ido trabalhar na residência episcopal de
Livramento, isso no início dos anos setenta.
Lá aprendeu, nem sempre de maneira amistosa, como desempenhar seu
ofício. Viu e ouviu, por força da profissão ou por mero acaso, detalhes da vida
diocesana que só se conhece quando se convive na intimidade de onde se comenta
ou se desdobra o feito. Exemplo disso foi ela ter escutado, não sei se por
acaso ou a propósito, a sigilosa conversa entre Dom Hélio e Dom Armando sobre a
então recente nomeação desse para suceder aquele, e ter recusado a passar a
informação ao chanceler, antes o repreendendo, dizendo que se tratava de um
segredo que só depois ela poderia lhe contar.
Mas, também, foi nesse ambiente tão peculiar que Raquel recebeu de
Dom Hélio cuidados, infelizmente, à época, vistos como desnecessários a alguém
que se ocupava do serviço doméstico: Raquel teve tratamento médico o quanto foi
necessário, estudou até concluir o segundo grau (atual ensino médio), teve seus
direitos trabalhistas respeitados e aposentadoria garantida. Por fim, recebeu
uma casa doada pela Diocese para que pudesse viver dignamente até seus últimos
dias. Essa foi por ela devolvida por entender ser injusto receber algo que não
tinha para quem deixar senão para “quem lhe fez ser gente”, como ela mesma se
referia à Diocese. Nessa mesma casa viveu desde que se aposentou até hoje, onde
recebeu da nossa Diocese, por sensibilidade do nosso Bispo Dom Armando, os
melhores cuidados que lhe foram necessários, para que pudesse viver com
dignidade.
Raquel se foi. O que leva, o que deixa? Tantas coisas me vêm à
memória dos anos de convívio. Creio que leva, como oferenda de quem no céu chega,
a sua história ornada de cicatrizes feitas pelo tempo, pelo trabalho, pela dor,
pela vida; leva a capacidade de sorrir das suas desgraças passadas, relidas
como meros fatos cômicos; leva o reconhecimento desmedido a quem lhe garantiu meros
direitos que o deveriam ser de todos os trabalhadores; leva o sofrimento como
algoz vencido. Mas, sobretudo, leva a fé capaz de fazer vencer a morte a
alcançar Deus na grande festa da eternidade, dando-me condições de imaginar
ouvir, em minha emoção, que, com sua voz estridente chegou ao céu dizendo: Pai,
cheguei...
O que deixa? Objetivamente pode ter deixado muito pouco, talvez
parte do que leva, que já é muito para quem com ela conviveu, porque nos deixa
lições encabeçadas pela própria experiência, que nos diz: vive melhor a vida
quem tem a coragem de, sendo livre, fazer dela uma festa, sorrir da própria
desgraça, alegrar-se com o pouco, sem perder a esperança, porque nosso rumo
derradeiro é o colo do próprio Deus.
Pe. Rinaldo Silva Pereira
Chanceler do Bispado