GRAÇA E ARTE DE PRESIDIR


 
Na última Assembleia Geral da CNBB, Dom Armando, como Presidente da Comissão Episcopal Pastoral para a Liturgia, apresentou entre os "Assuntos de Liturgia" o tema: "Graça e arte de presidir". Nesta semana, em nossa Coluna Litúrgica, postamos a primeira parte dessa reflexão:




Na Assembleia Geral da CNBB, em 2013, a Comissão Episcopal Pastoral para a Liturgia, ao apresentar os “Assuntos de liturgia”, destacou a urgente necessidade de melhorar a formação litúrgica dos que na Igreja exercem o ministério da Presidência litúrgica. Afirmava-se: “Esmerada formação é exigida por parte daqueles que se preparam para o exercício do ministério pastoral para que a ação litúrgica (o rito) expresse devidamente o mistério celebrado e leve a uma experiência de fé, deixando transparecer a ação de Cristo Ressuscitado e de seu Espírito”[1].
Presidir uma celebração litúrgica é, antes de tudo, uma questão de fé; mas exige diferentes cuidados e competências, de tal forma que podemos dizer que é também uma questão de arte. Por isso, continuando no assunto, falamos da arte de presidir.
1.      Questionamentos
Como avaliamos as celebrações litúrgicas de nossas Comunidades e aquelas às quais ‘assistimos’ nas TVs? Com quais critérios julgamos que uma celebração litúrgica foi realizada ‘com arte’ e, sobretudo, de acordo com o espírito e a espiritualidade da nossa Igreja? Como definir, então, a arte de presidir?
Se por um lado não faltam exemplos de celebrações dignas, ricas em conteúdo e nobres no estilo celebrativo, em sintonia com as orientações da Igreja, por outro, ‘assistimos’ a celebrações que deixam a desejar, justificando, assim, algumas críticas a respeito, não à Reforma litúrgica, mas à sua execução.
 Com o desejo de suscitar reflexão – entre nós Pastores, antes de tudo, como também nos lugares de formação – proponho, em nome da Comissão Episcopal Pastoral para a Liturgia, estas reflexões construídas ao redor de alguns questionamentos: que ‘traços’ humanos e espirituais deve ter quem, por vocação, é chamado a presidir a Liturgia, sobretudo a celebração da Eucaristia, memorial da Páscoa do Senhor? Que ‘modelo’ de Liturgia é (deveria ser) oferecido hoje ao povo de Deus por quem ‘guia’ a Liturgia e a Comunidade (lembremos que as duas dimensões não podem ser separadas!)”[2]? Quando uma celebração litúrgica pode ser considerada bonita, autêntica, verdadeira ‘obra de Deus’ (opus Deu) como a chamavam os antigos?
2.      Modelos celebrativos e espiritualidade litúrgica
a)    A formação litúrgica deve conduzir a compreender, por experiência, o sentido do mistério que toda ação litúrgica põe nas mãos, de forma especial, de quem foi escolhido para estar à frente do povo de Deus. Formação verdadeira se dá somente quando o candidato se alimenta na escola da espiritualidade litúrgica. Esse caminho, feito de estudo e de experiência, vai transformando o candidato que, ordenado presbítero, tornar-se-á verdadeiro educador do povo, por que aprendeu a se alimentar nesta fonte.
O papa Bento XVI, na Exortação Apostólica pós-sinodal Sacramentum Caritatis (SaCa), observa: “Visto que a liturgia eucarística é essencialmente ação de Deus que nos envolve em Jesus por meio do Espírito, o seu fundamento não está à mercê do nosso arbítrio e não pode suportar a chantagem das modas passageiras” (SaCa 37).
Quem preside a Eucaristia deve conhecer os passos que conduzem a uma autêntica experiência de fé para orientar a Comunidade inteira. Esta é a verdadeira mistagogia que, desde os Padres da Igreja, pertence à alma mais íntima da iniciação cristã. Trata-se de uma competência a ser cultivada desde os primeiros anos da formação presbiteral, e não só nos estudos teológicos e litúrgicos, mas, sobretudo, de forma experiencial, nas celebrações cotidianas no seminário ou casas de formação. Assim, aos poucos, o candidato ao ministério ordenado deve conhecer as grandes “leis” da liturgia e, ainda mais, amadurecer uma profunda espiritualidade. A esse respeito, ainda o papa Bento XVI, falando de beleza e liturgia, escreve: “A verdadeira beleza é o amor de Deus que nos foi definitivamente revelado no mistério pascal... A beleza não é um fator decorativo da ação litúrgica, mas seu elemento constitutivo” (SaCa 35).
De fato, a liturgia, através e apesar das diferentes expressões rituais e textuais, é o lugar da confessio fidei (manifestação da fé) da Igreja. Quem preside a ação litúrgica deve respirar com a Igreja e conduzir a Comunidade toda nesse espírito eclesial. Desse modo, no coração de cada irmão e irmã, vai amadurecendo a mesma profissão e intensidade de fé e a liturgia será, momento não só informativo, mas de graça, isto é, experiência viva da ação do Espírito na vida de cada fiel.
b)   Existe, porém, o perigo de se perder o autêntico espírito da presidência litúrgica e por diferentes causas. Pode ser que o exercício exigente do ministério tenha se esfriado aos poucos, juntamente com a razão profunda da escolha vocacional e com a fé em Jesus Cristo. Só a fé pode dar sabor e ardor ao exercício da presidência litúrgica.  A identidade de um Ministro da Igreja é revelada quando ele é capaz de ‘se perder’, doando sua vida no serviço aos irmãos, como Jesus: “Eu estou entre vocês como alguém que serve” (Lc 22,27). Se a força interior diminuir, também o exercício da presidência litúrgica fica enfraquecido.
Assim, ‘assistimos’ a celebrações litúrgicas que nem sempre estão de acordo em tudo com a autêntica liturgia e, às vezes, nem com o verdadeiro espírito evangélico. Pior quando são difundidas pelas TVs, incluindo as católicas. Observam-se, por exemplo, presidentes de celebração que chamam a atenção da Assembleia mais sobre si mesmos do que sobre o mistério pascal do Senhor. Palmas e choro, emoções e expressões subjetivas entram e dominam a celebração mesma. São modelos comunicativos que mais se parecem com comícios ou shows do que com a liturgia de nossa Igreja. Ainda mais: estilo presidencial que não manifesta amor para com o povo. Vemos isso quando aquele que preside se coloca acima dos irmãos e irmãs ou quando cobra sem se entregar de alma e corpo para o bem dos irmãos, ou ainda quando busca elogios e gratificações. Em suma, um estilo presidencial contrário às exigências da liturgia e da vida eclesial.
c)    O Ministro que ama e serve no estilo de Jesus viverá a presidência da Eucaristia qual momento alto de sua fé e de seu serviço. Quem preside a liturgia e a vida da Comunidade em atitude fraterna e serviçal contagiará o seu povo. Sua abertura e sensibilidade farão crescer, ao redor de si, o número e a qualidade dos que servem por amor. O ícone mais expressivo do que significa presidir, tanto a celebração como a Comunidade, permanece Jesus que começa a celebração da última Ceia lavando os pés dos discípulos e a termina entregando-se à morte. Toda celebração exige que se torne visível na vida a caridade de Cristo que tem sua culminância na Páscoa e seguindo a recomendação do Concilio de colocar todo o agir litúrgico no contexto do memorial da Páscoa do Senhor (cf. Sacrosanctum Concilium - SC 5).
O ato de presidir deve alimentar um diálogo orante com Deus e conduzir à escuta da Palavra, à ação de graças, à contemplação do Mistério e ao olhar de amor sobre a história humana. Para bem presidir, é preciso ter aprendido e saber ajudar a ‘Assembleia’ – sujeito principal da celebração - nessa escuta atenta e no agradecimento confiante, no louvor alegre e no ‘fazer memória’ sentindo-se parte viva de uma longa história de salvação da qual a liturgia é ‘momento’ atualizante.
Presidir a celebração da Eucaristia é graça; é aproximar-se do fogo de Deus, como aconteceu com Moisés e Elias; comporta ficar face a face com o Senhor, mergulhando no seu amor. Quem vive e se alimenta da escola da Palavra e nela escuta os apelos de Deus, sobre si e para o seu povo, terá disposição para acolhê-los. Quem preside qualquer celebração deve conhecer, por experiência, o estilo do agir de Deus no coração dos discípulos. Por isso, é preciso manter o ‘olhar fixo em Jesus’ (cf. Hb 12,1-2), na espera da plena contemplação. A Eucaristia ensina a manter aberta a esperança através das frequentes invocações: “Vem Senhor Jesus”, “até que Ele venha”. Quem vive da liturgia, aprende, também, como viver relações humanas autênticas e profundas.



[1] O texto prossegue: “Isto exige espiritualidade. Celebrações realizadas com serenidade e sensibilidade simbólica, capazes de suscitar experiência espiritual. Merecerá a devida atenção uma sensata criatividade. A iniciação litúrgica de todos é uma ‘obra de grande amplitude, que deve começar nos seminários e casas de formação e continuar ao longo de toda a vida’” (VQA 15).
[2] Quem vive as fadigas pastorais, bem sabe como é complexo o exercício do ministério. Boa parte dos sacerdotes (bispos e padres) estão com a agenda cheia para atender às exigências (mínimas) das pessoas e das Comunidades, distantes. Ainda mais as razões da participação às celebrações litúrgicas nem sempre estão de acordo com o que a Igreja propõe.  Às vezes o povo é movido por razões espúrias (devocionismo, hábitos sociais... ou até magia e superstição). As fadigas do atendimento pastoral, sem excluir outras razões e dificuldades ligadas à pessoa do ministro, não favorecem que nas celebrações se crie aquele clima de fé e oração que favoreça um vivo contato com o Senhor.